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Sob a pele do jumento

Na segunda etapa, está o pequeno comerciante, também sertanejo, que junta um grupo de jumentos para revendê-los a transportadores ou fazendeiros. Por exemplo: João Ferreira, que há duas décadas compra e vende jegues em feiras de animais, mas que de tempos para cá diz que o comércio minguou: “Tem caído muito o movimento”, comentou na feira de Cansanção.

Ferreira contornou a queda do mercado vendendo os animais mais velhos e fracos a atravessadores chineses. Cada animal saiu por R$ 100 aos estrangeiros, enquanto na feira o jegue bom para trabalho custa R$ 300.

Na terceira etapa, transportadores levam animais até fazendas baianas habilitadas. Quando o abate se intensificou em 2017, uma centena de propriedades rurais se cadastrou como criadora de asinino na Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab). 

Mas não há dados sobre a criação formal no Brasil. Essas fazendas são, na realidade, entrepostos para animais trazidos não só de municípios baianos como de todo o Nordeste. Soubemos de transportadores que vinham de Maranhão, Piauí, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. 

Para trafegar com animais, o motorista deve portar a Guia de Trânsito Animal (GTA), um documento obrigatório de controle dos serviços de defesa agropecuária. Na prática, no entanto, transportadores viajavam sem permissão. Para burlar a fiscalização, trafegavam à noite cortando propriedades rurais.

Uma das fazendas habilitadas é a de Herysnaldo Marinho, em Teofilândia. A propriedade consta como uma das 12 fornecedoras de jumentos ao frigorífico Cabra Forte, a 200 quilômetros dali, em Simões Filho, na região metropolitana de Salvador. 

As GTAs indicam sua fazenda como o local de origem de jegues abatidos. Mas chegando lá soubemos que os animais eram apenas abrigados na propriedade enquanto o documento era forjado. Os jumentos desembarcavam, segundo o fazendeiro, de um caminhão cujo dono era conhecido como Moral, que percorria o Nordeste coletando animais. 

Marinho contou ter sido recentemente procurado pelo caminhoneiro, mas, dessa vez, negou acordo. “Quando eu vi na televisão [as denúncias de maus-tratos], eu parei, vi que não era coisa de Deus”, afirmou. Em sua fazenda, garante, “era um dengo danado” com os jegues.

Com a GTA em mãos, caminhoneiros podem levar a carga a frigoríficos das cidades mais próximas – o quarto atravessador da cadeia. Nos estabelecimentos com registro para comercializar asininos, o transportador recebe, em média, R$ 240 por animal abatido.

Até setembro, nenhuma empresa brasileira estava habilitada a exportar asinino para a China – recentemente, o frigorífico Frinordeste, de Amargosa, recebeu a permissão. Por isso, o transporte marítimo era feito por companhias de logística do Vietnã e Hong Kong – o quinto grupo de atravessadores. A HL Vietnam International e a Fortune Freight (FFC International) compravam a carga de frigoríficos – por entre R$ 300 e R$ 400 cada animal – e a despachava no porto de Salvador. 

O tratador de jumentos Jackson Almeida no Haras Ipiranga, zona rural de Itororó, na Bahia. (Foto: Alexandre Guzanshe)

Não localizamos compradores da sexta e última etapa da cadeia, mas o desembarque era igualmente problemático na Ásia. A carga chegava pelos portos de Haifom, no Vietnã, e de Hong Kong. “O jumento entrava por contrabando”, informou Rui Leal, da Adab. 

Na China, uma peça de pele de jumento é comprada por até US$ 4 mil (R$ 16 mil). Já o produto final, uma caixa de Ejiao, custa US$ 186 (R$ 750).

O Ministério da Agricultura não forneceu dados oficiais desse mercado. Pelos cálculos aproximados, o comércio do jumento gerou, em pouco mais de um ano, uma receita bruta em torno de R$ 40 milhões aos frigoríficos da Bahia, últimos atravessadores brasileiros. Para se ter ideia, o Brasil exportou no último ano US$ 5,4 bilhões (R$ 21 bilhões) de bovinos, sendo US$ 1,26 bilhão (R$ 5,08 bilhões) apenas para a China.  

“Os jumentos estão indo de brinde para os chineses”, alertou Sônia Martins Teodoro, representante da ONG SOS Animais de Itapetinga, que acompanha denúncias de maus-tratos. O acordo, segundo ela, foi um agrado dos governos brasileiro e baiano para atrair investimentos. A Bahia espera abrigar grandes obras de infraestrutura chinesas nos próximos anos, como parque industrial e a revitalização do porto de Aratu, construção de ponte ligando Salvador a Itaparica e da Ferrovia de Integração Oeste-Leste.

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