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Sob a pele do jumento

Na feira de animais de Cansanção, a 350 quilômetros de Salvador, três jumentos dóceis e aptos ao transporte de carga esperam na sombra por um novo dono. Ali vende-se de tudo quanto é animal que sirva ao sertanejo daquela terra seca, e o jegue já foi um dos mais populares. Mas, aproximando-se dos três espécimes, com chapéu de couro bem trabalhado, o agricultor José Araújo de Souza decreta: “Quem tem o seu que o segure, porque o jegue vai acabar!”

Após acordo com a China, a Bahia começou a exportar carne e couro de jumentos. (Foto: Alexandre Guzanshe)

O jumento, jegue ou asno da espécie asinina chegou ao Brasil com os portugueses há cinco séculos e adaptou-se tão bem ao clima semiárido que se tornou símbolo do trabalho pesado no interior nordestino, “o maior desenvolvimentista do sertão”, como cantou Luiz Gonzaga. No entanto, começou a sumir da vista do sertanejo após um inusitado negócio com a China.   

O país asiático tem interesse, principalmente, no couro do animal – matéria-prima para a produção do Ejiao, uma gelatina usada na medicina e em cosméticos chineses, que movimentou o equivalente a R$ 22 bilhões em 2018. Já a carne é um subproduto consumido no norte. 

A China não consegue atender sozinha à demanda de criar até dez milhões de jumentos por ano para o abate, por isso importa o animal de países da África e América do Sul. Nos últimos dois anos, o Brasil entrou com força nesse mercado.

Essa investigação revela, entretanto, um faroeste na cadeia de atravessadores de asininos do Nordeste ao mercado chinês. Nos 2.600 quilômetros que percorremos em setembro do Sertão ao Sudoeste da Bahia, que viu o boom do negócio, avistamos apenas 15 jumentos. Por mais de um ano, milhares foram submetidos a condições degradantes e abatidos sem rigor.

Quando chegamos à região, o negócio estava interrompido por força de uma ação judicial em resposta aos maus-tratos. O ciclo, porém, já vem sendo retomado nos antigos moldes.

Um negócio fácil 

Que o fiel companheiro do sertanejo poderia despertar o interesse de grandes investidores estrangeiros foi uma surpresa até para autoridades brasileiras. Nem a então ministra da Agricultura, Kátia Abreu, acreditou no pedido feito durante sua viagem à Ásia em 2015.

“Pareceu piada”, escreveu no Twitter sobre um empresário chinês interessado em importar asininos. “Inacreditável, mas sua demanda é de 1 milhão de jumentos [por] ano”.

O Brasil sequer tem um milhão de jumentos para vender. Em 2012, o IBGE contabilizou 902 mil animais no país, sendo 97% (877 mil) no Nordeste.  Mesmo assim, em julho de 2017, a Bahia começou a exportar carne e couro à China, com meta de enviar 200 mil unidades por ano. 

Em um ano e quatro meses após o acordo, mais de 100 mil jumentos foram mortos nos três frigoríficos da Bahia autorizados pelo governo federal – nos municípios de Amargosa, Itapetinga e Simões Filho. Outros abatedouros registrados para a atividade estão em estados onde há poucos jegues para suprir o mercado. Se o ritmo de abate chegar à expectativa chinesa, a espécie pode desaparecer em menos de cinco anos no Nordeste. 

Comércio ao estilo faroeste

Quando o abate se intensificou em 2017, uma centena de propriedades rurais se cadastrou como criadora de jumentos, mas o animal não costuma ser criado em pastos. (Foto: Alexandre Guzanshe)

A redução drástica de jumentos ocorre porque sua cadeia é extrativista – ele é pego na natureza e morto. Não há produção estruturada, normas de criação, fiscalização de transporte ou medidas contra condições precárias; tampouco há uma contagem recente de sua população. Nela, há em média seis atravessadores, incluindo sertanejos, comerciantes, transportadores, fazendeiros ou arrendatários, donos de abatedouros e de empresas de logística aqui e na China. 

No início, está o sertanejo nordestino, que vende jumentos soltos ou de seu próprio quintal por valor entre R$20 e R$50. Em alguns casos, até doa o animal que apenas gera gastos à família. É o caso de Leonardo, de 16 anos, que recolhia jegues sem dono para vendê-los. Na feira de Euclides da Cunha, a 300 km de Salvador, era conhecido como o jovem que levava animais para o abate. Na frente de colegas, garantiu que apenas ajudava um amigo no transporte. “Mal sabia o que estava fazendo”, disse envergonhado, arrancando risadas irônicas de quem estava perto. 

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